Escaneando 2,4 bilhões de olhos, Índia tenta reduzir desigualdade

A migrante Vijaykanti tem suas íris escaneadas para receber um cartão de identidade nacional na Índia
Por toda esta vasta e caótica nação, funcionários estão criando o que será o maior banco de dados de identificação biométrica do mundo, reunindo 1,2 bilhão de indivíduos. Mais radical do que seu tamanho, no entanto, é a sua ambição: reduzir a desigualdade que corrói a ascensão econômica indiana, ao vincular digitalmente cada pessoa do país ao avassalador crescimento nacional.


O programa permitirá que os cidadãos recebam benefícios sociais, abram uma conta bancária ou obtenham um telefone celular em aldeias remotas, algo que ainda é impossível para muita gente hoje em dia.

Há décadas a gigantesca e ineficaz burocracia indiana gasta bilhões de dólares para tentar tirar os pobres da miséria. Mas grande parte do dinheiro é desperdiçada. Agora, usando a mesma tecnologia poderosa que transformou a economia privada do país, o governo indiano criou uma pequena "start-up" para tentar transformar --ou contornar-- a paralisante burocracia legada pelo passado socialista do país.

"O que estamos criando é tão importante quanto uma estrada", disse Nandan Nilekani, bilionário magnata do setor de software, cooptado pelo governo para criar o banco de dados. "É uma estrada que de certa forma liga cada indivíduo ao Estado."

Nesse programa, cada cidadão recebe um RG de 12 dígitos depois de ter as íris e impressões digitais registradas digitalmente. Trata-se de uma solução engenhosa para um problema particularmente complicado.

A maioria dos cidadãos mais pobres da Índia, como os daqui de Kaldari, vive atada a um sistema de identificação baseado nas aldeias, o que torna a migração, crucial para qualquer economia em crescimento, muito mais difícil.

O projeto também pode reduzir a corrupção. Com a transmissão eletrônica de dados e a verificação deles por muitos órgãos governamentais, fica muito mais difícil para funcionários desonestos se apropriarem dos benefícios dirigidos aos cidadãos.

Com o novo sistema, chamado Aadhaar ("Fundação"), qualquer indiano poderá ter sua identidade verificada em oito segundos em qualquer lugar do país, com o auxílio de equipamentos portáteis e baratos, ligados à rede de telefonia celular.

Ele ajudará também na construção de uma verdadeira cidadania, numa sociedade onde a identidade é quase sempre mediada por um grupo --casta, parentesco ou religião. O Aadhaar deve, pela primeira vez, identificar cada indiano como um indivíduo.

Embora seja a segunda economia que mais cresce no mundo, a Índia tem mais de 400 milhões de cidadãos na pobreza. Quase metade das crianças menores de 5 anos está abaixo do peso ideal.

Os custosos sistemas de bem-estar social da Índia são tão ineficientes que há armazéns abarrotados de grãos apodrecendo, apesar dos índices de desnutrição que rivalizam com os da África. Muitos alimentos são desviados para o mercado privado antes de chegarem aos famintos.

Os sistemas atuais são incapazes de conectar as necessidades mais básicas dos cidadãos à ajuda que está disponível. Com a tecnologia, dizem partidários do projeto, as pessoas poderiam interagir com o Estado sem depender das autoridades locais que controlam os serviços governamentais.

"Não é possível melhorar o ser humano", disse Ram Sevak Sharma, diretor-geral do programa de identificação. "Mas pode-se certamente melhorar os sistemas. E os mesmos seres humanos imperfeitos, com um sistema melhor, serão capazes de produzir resultados maiores e melhores."

O governo criou uma instituição híbrida incomum: uma pequena equipe de burocratas da elite, colaborando com veteranos de "start-ups" do Vale do Silício e com as mais respeitadas empresas de tecnologia de Bangalore.

O projeto empregará apenas algumas centenas de pessoas, e companhias privadas irão convocar os cidadãos.

O custo de cada RG é de cerca de US$ 3, e mais de 30 milhões de pessoas já o receberam. O processo é gratuito e voluntário.

Esquerdistas temem que o banco de dados corroa o papel do Estado no auxílio aos pobres. Por enquanto não houve objeção de burocratas, políticos e empresários poderosos e corruptos, mas isso quase certamente irá acontecer quando os empecilhos ao seu "modus operandi" ficarem evidentes.

Nilekani, o responsável pelo projeto, foi cofundador da mais famosa "start-up" indiana. Em 1981, ele reuniu um capital de 10 mil rupias (cerca de US$ 1.100) com seis colegas para criar a Infosys, que hoje vale US$ 30 bilhões e emprega mais de 130 mil pessoas no mundo todo.

Ele deixou a presidência da Infosys para supervisionar a iniciativa. "Eu sou um empreendedor dentro do sistema", explicou. Tal ideia no passado seria simplesmente impensável.

Nilekani, 56, vem de uma época em que quase toda a iniciativa privada na Índia estava sufocada sob a chamada Licença Raj, o antigo sistema que governava a economia fechada da Índia. Isso significava que o empreendedorismo era quase impossível.

Quando o governo decidiu criar o sistema único de identificação, Nilekani soube aproveitar a oportunidade de comandá-lo. Embora com status de ministro, ele ficaria à frente de um órgão público pequeno e aparentemente obscuro.

"Quem não está familiarizado com a tecnologia não entende como isso é grande", disse um funcionário do projeto.

Não surpreende, portanto, que algumas pessoas vejam a ideia de centralizar a identificação dos cidadãos como um pesadelo distópico. Defensores da privacidade receiam que o governo use o programa para rastrear os cidadãos. A Índia não tem leis robustas para a proteção da privacidade. Por isso, o banco de dados foi concebido para conter o mínimo de informações --apenas nome, data de nascimento, sexo e endereço.

Quando alguém for confirmar a identidade de uma pessoa usando o RG, o banco de dados fornecerá apenas uma resposta do tipo sim ou não.

Muitos críticos influentes argumentam que a iniciativa é cara --US$ 326 milhões foram reservados para ela no próximo ano fiscal, e o projeto deve levar uma década para ser concluído-- e desnecessária, porque há formas mais fáceis de combater a corrupção. O Estado de Chhattisgarh, no centro da Índia, reduziu drasticamente o desperdício e as fraudes na distribuição de grãos subsidiados graças a cartões inteligentes.

Mas o projeto recebe um grau de apoio incomum por parte dos altos escalões do governo.

À sombra de um viaduto em Nova Déli, um grupo de sem-teto fazia fila à espera da identificação. O puxador de riquixá Mohammed Jalil não tem conta bancária, o que dificulta qualquer poupança. Gente pobre como ele tem direito a subsídios para alimentação, moradia e saúde, mas ele não tem acesso a nada disso. Jalil espera que o Aadhaar lhe permita abrir uma conta bancária. Ele poderia também obter carteira de motorista e celular.

"Isso vai me dar uma identidade", disse. "Vai mostrar que eu sou um ser humano, que estou vivo, que vivo neste planeta. Vai provar que sou um indiano."  FONTE: NEW YORK TIMES
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