Após a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990), o governo da
coalizão socialista Concertación propôs à população chilena um acordo
tácito: vocês aceitam o modelo educacional em curso e postergam suas
demandas, e nós garantimos, por meio do ensino, que seus filhos tenham
uma vida melhor. Os chilenos concordaram, o que colaborou para que a
porcentagem de estudantes que chegam à universidade alcançasse um dos
níveis mais altos do mundo - saltando de míseros 4% ou 5% para os atuais
40%. Um quadro inegavelmente melhor, já que os pais de pelo menos 70%
desses jovens não têm ensino superior completo. "Em compensação, eles
precisaram pagar muito para ver seus filhos estudarem. Sua dívida com o
estado é muito cara", salienta o professor Joaquín Fermandois, do
departamento de História da Universidade Católica do Chile. Sim, o
crescimento significativo desse índice, apontado pelo Programa de
Avaliação Internacional do Estudante (Pisa, na sigla em inglês),
promovido pela OECD, não foi de graça. Para vê-los graduados, os
responsáveis por esses alunos obedeceram passivamente às condições de
crédito que estavam por trás da proposta feita pelo governo. E, até
agora, não tiveram uma recompensa concreta.
As manifestações que vimos nas últimas semanas
– e que se acalmaram nos últimos dias, devendo continuar assim até o
diálogo com o presidente Sebastian Piñera no sábado – nada mais são do
que resultado daquele modelo educacional imposto pela ditadura de
Pinochet, mantido pelo regime socialista por mais de 20 anos e, agora,
prolongado também pelo atual governo. Esse sistema segue a linha
ultraliberal implementada na economia nos anos 1980 sob a tutela do
americano Milton Friedman, fundador da Escola de Chicago. Com ele, o
ensino se transformou em mais um produto de mercado da livre
concorrência - o que pode dar certo em grandes economias, mas tende a
ser frustrante em países em desenvolvimento, como o Chile. À época, a
importância da educação foi exaltada para convencer a população a
desembolsar altas quantias em dinheiro. O governo defendia que os
benefícios compensariam o alto custo e que reformas profundas e mudanças
estruturais deveriam ser deixadas de lado. Afinal, a educação era
prioridade, diziam.
Então, as escolas do país foram separadas em três grupos: as públicas,
que foram municipalizadas; as privadas subsidiadas, cujos alunos
recebiam "abonos" do governo; e as totalmente particulares, pagas com
dinheiro da família. Essa divisão levou o Chile a dois cenários de
educação totalmente paradoxos: de um lado, há escolas exemplares e
reconhecidas internacionalmente - as particulares -, e de outro,
instituições de péssima qualidade - as públicas e as subsidiadas. "O
ensino público é completamente segmentado de acordo com a classe
social", enfatiza Sebastian Vielmas, secretário-geral da Federação dos
Estudantes da Universidade Católica (Feuc), que participa do movimento
estudantil. E se a educação no país, ainda de acordo com o Pisa, é a
menos pior da América Latina (com exceção do México), isso ocorre muito
mais por demérito das nações em comparação - como o Brasil, por exemplo -
do que por mérito do próprio Chile, apesar das faculdades com qualidade
elevada melhorarem o índice das ruins.
Frustrações - Para os brasileiros, a situação do
ensino chileno não é novidade. Aqui e lá o que se vê é a repetição do
quadro de desigualdade presente em todo o continente, onde a renda
familiar é o que determina a qualidade de ensino que crianças e jovens
irão receber. Por isso, os alunos de escolas privadas alcançam
resultados invejáveis, enquanto seus colegas das escolas municipais não
atingem os níveis mínimos de aprendizado. O professor Joaquín Fermandois
ressalva, porém, que as questões relacionadas à municipalidade e à má
qualidade dos professores do sistema público também são semelhantes em
países da Europa, como França e Alemanha. "A educação massiva tem
problemas que são similares em toda parte do mundo. O que torna o modelo
chileno mais grave é mesmo sistema de 'abonos'", destaca.
Uma pesquisa do Pisa feita com alunos chilenos da 5ª série do ensino
fundamental comprova que os que estudam em escolas particulares - e,
portanto, pertencem a famílias mais ricas - têm um desempenho 35% melhor
do que os mais pobres, do mesmo ano, que estudam em instituições
públicas. Isso acontece porque os "abonos" dados pelo estado às escolas
públicas são de apenas 100 dólares (cerca de 160 reais) por mês, o que
representa apenas um décimo das taxas cobradas pelas escolas privadas. O
presidente Sebastian Piñera chegou a apresentar em dezembro de 2010 uma
proposta de reforma educacional que previa aumentar esses valores, mas
ainda não foi tomado nenhum passo prático nessa direção.
Para Fernandois, a solução passa longe da utópica gratuidade total da educação exigida pelos manifestantes.
Ele defende que o sistema continue misto, com financiamento público e
privado, mas com algumas transformações que possibilitem amenizar essas
disparidades. "Uma possibilidade é dar àqueles que não têm meios a
possibilidade de pagarem suas dívidas com prestações sociais. Outra, é
fazer um intercâmbio de professores, para que os melhores passem alguns
anos em escolas públicas", sugere. Propostas existem, mas é preciso real
vontade de mudar uma realidade que se arrasta há decadas e leva com ela
o bem-estar da população - que é obrigada a escolher, muitas vezes,
entre seu sustento e sua educação. FONTE: VEJA ONLINE